Não é uma palavra fácil de
pronunciar e ainda menos de implementar, mas a remunicipalização da água é
considerada uma tendência mundial. Em 15 anos, 235 cidades e cerca de 106
milhões de habitantes retomaram a gestão do tratamento e fornecimento de água
das mãos de empresas privadas. Entre elas, pequenos municípios de países
pobres, mas também grandes capitais como Berlim, Paris ou Buenos Aires. França,
berço da Suez e da Veolia, duas poderosas multinacionais que dominam o mercado
da água no mundo, é hoje o reino das remunicipalizações, com 94 casos desde o
ano 2000.
Embora no Brasil essa tendência
seja observada de longe, Itu, o município no interior de São Paulo que sofreu
drásticos cortes de água e protestos violentos no ano passado, anunciou a
intervenção da concessionária, Águas de Itu. A intervenção do município de
155.000 habitantes ameaça a continuidade de um contrato que só acabaria em 2037
e abre as portas para que a remunicipalização do serviço possa acontecer no
futuro.
O caso da capital do rio Sena é o
mais emblemático para descrever o fenômeno, mas foi um processo complicado que
foi proposto pela primeira vez em 2011, pelo então candidato a prefeito
Bertrand Delanoë. Em 2010, Eau de Paris começou a atender os 2,2 milhões de
habitantes da região metropolitana e assumiu os contratos de fornecimento de
água, nas mãos da Veolia e da Suez desde 1985. Foi um desafio, pois era a
primeira vez que o poder público recuperava um sistema dessa magnitude.
Eau de Paris economizou, no
primeiro ano, 35 milhões de euros, graças a internalização dos dividendos antes
destinados aos acionistas, e reduziu as tarifas em 8% em relação a 2009. Ainda
é cedo para avaliar o sucesso total da operação, mas a cidade enterrou um
sistema de gestão opaco e questionado, pois, no decorrer dos anos, Paris havia
perdido o controle do que era feito nas entranhas subterrâneas do município.
Em 1987, havia se privatizado
parcialmente o órgão responsável de fiscalizar as duas empresas. Criou-se a
Société Anonyme de Gestion des Eaux de Paris (Sagep), uma sociedade de controle
cujo capital vinha em um 70% da cidade, 28% de Veolia e Suez e 2% de um banco
nacional público de investimentos. "As ações que as companhias privadas
tinham na Sagep criaram um claro conflito de interesse, pois o órgão devia
supervisionar a concessão, situação que, conforme foi dito em uma auditoria da cidade
de 2003, criava um papel paradoxal e relações de associação que não são
favoráveis a um exercício de controle", relata no livro Remunicipalização:
O retorno da água a mãos públicas, Martin Pigeon, especialista em serviços
públicos doCorporate Europe Observatory.
A Prefeitura também não tinha
acesso à informação financeira fiável, nem dados sobre o estado da rede. Três
auditorias questionaram desde 2001 a opacidade da gestão. Durante o domínio das
companhias sobre o sistema as perdas da rede se reduziram de 22% em 1985 a 17%
em 2003, e caíram até 3,5% em 2009 [ em São Paulo beiram 30% ]. Em compensação,
as tarifas aumentaram 265% entre 1985 e 2009, enquanto o custo de vida
aumentava 70,5%, segundo os dados recolhidos no livro Remunicipalização. Paris
está hoje entre as 60 cidades que mais caro cobra pela sua água (14,5 reais por
cada mil litros), segundo o estudo de 2014 realizado pela revista especializada
Global Water Intelligence.
As dificuldades para que a
remunicipalização seja também tendência no Brasil são, principalmente, um marco
regulatório novo e uma infraestrutura carente. No país, apenas 304 municípios,
5% do total, têm algum tipo de concessão ou parceria com o setor privado para
abastecer seus habitantes e eles mantêm concessões relativamente recentes
considerando a duração deste tipo de acordos. Para se ter uma ideia, a primeira
concessão privada, com prazo de 44 anos, foi assinada em 1995 no município de
Limeira, em São Paulo, segundo o anuário da Associação Brasileira de
Concessionárias (Abcon).
O país, subdesenvolvido nas
questões de saneamento (quase 35 milhões de pessoas ainda não têm acesso à rede
de água) também precisa de dinheiro para levar água e esgoto a toda a
população, segundo os especialistas consultados. "Aqui a necessidade de
recursos para universalizar o acesso à água, construir infraestrutura e
melhorar a gestão é tão grande que só os recursos públicos não são
suficientes", lamenta Newton Azevedo, governador do Conselho Mundial da
Água. "No caso do Brasil, a solução para enfrentar as questões de
saneamento é a complementaridade dos recursos públicos e privados. O próprio
Governo Dilma, com o lançamento de um pacote de 200 bilhões de reais em
concessões, reconhece sua limitação financeira e a necessidade do setor privado
para o desenvolvimento do país. Cada país tem sua realidade", completa
Azevedo.
Itu, que ameaça suspender o
contrato com sua concessionária se achar irregularidades, pode se tornar, se
não achar um substituto, uma exceção no país. O município afirma que ainda não
tem condições de assumir o serviço, mas não descarta a possibilidade no caso de
não achar uma concessionária.
Berlim: o preço do controle
público
O caso de Berlim está entre os
favoritos dos defensores da recuperação da gestão pública, e desde 2012 pelo
menos seis cidades alemãs têm passado pelo mesmo processo. A privatização da
água em Berlim em 1999, quando a empresa pública vendeu por 1,7 bilhão de euros
49,9% de suas ações ao consórcio formado pela RWE Aqua Ltd e, de novo, à
francesa Veolia, foi considerada um exemplo de sucesso, menos para os seus
clientes. Passados alguns anos, as empresas descumpriram várias das promessas
dos seus herméticos contratos, reduziram os investimentos, descuidaram a
qualidade do serviço e encareceram a conta, com um aumento de 35% em menos
cinco anos. O contrato privado era tão impopular que nas eleições municipais de
setembro de 2011 a remunicipalização foi parte dos programas de três dos quatro
principais partidos.
A insatisfação popular se
materializou em um referendo naquele ano que deu voz a 666.000 berlinenses
sobre o que eles queriam fazer com sua água. 98,2% deles votaram por mais
transparência, e queriam saber os termos dos contratos com as duas companhias.
Após o referendo, os contratos foram publicados online e os berlinenses puderam
comprovar as favoráveis condições que os investidores privados tinham se
garantido graças aos aumentos da tarifa. Em 2012, Berlim comprou de volta as
ações das companhias por mais de 1,3 bilhão de euros. Uma vitória cara que pode
comprometer seu sucesso: o valor será repassado nas contas de água dos seus
clientes por 30 anos. "Ainda é cedo para avaliar o sucesso, mas o aumento
da conta em Berlim é consequência da privatização anterior, e não da
remunicipalização, portanto não podemos concluir nada sob esta premissa",
avalia Emanuele Lobina, pesquisador doPublic Services International Research
Unit da Universidade de Greenwich.
Além de Berlim, outras cidades
pagaram um custo alto, que inclui as indenizações pela rescisão dos contratos
com as empresas, por recuperar a gestão dos seus recursos. A cidade de
Indianópolis, nos Estados Unidos, teve que pagar 29 milhões de dólares à
multinacional Veolia por encerrar o acordo dez anos antes do combinado e, na
Argentina, a concessionária denunciou em um tribunal de arbitragem
internacional a cidade de Buenos Aires para ser indenizada pela reversão da
gestão. Nove anos depois, neste mês de abril, a Justiça reconheceu o prejuízo
da Suez que deve ser indenizada pelo Governo Argentina com 405 milhões de dólares.
Já conseguir a aplicação da sentença vai ser outra batalha.
Fonte: EL País
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